quarta-feira, 28 de julho de 2010

CARTA DE JOÃO UBALDO PARA FHC (ANTIGA)

Senhor Presidente – João Ubaldo Ribeiro
25 de outubro de 1998

Senhor Presidente,

Antes de mais nada, quero tornar a parabenizá-lo pela sua vitória estrondosa nas urnas. Eu não gostei do resultado, como, aliás, não gosto do senhor, embora afirme isto com respeito. Explicito este meu respeito em dois motivos, por ordem de importância. O primeiro deles é que, como qualquer semelhante nosso, inclusive os milhões de miseráveis que o senhor volta a presidir, o senhor merece intrinsecamente o meu respeito. O segundo motivo é que o senhor incorpora uma instituição basilar de nosso sistema político, que é a Presidência da República, e eu devo respeito a essa instituição e jamais a insultaria, fosse o senhor ou qualquer outro seu ocupante legítimo. Talvez o senhor nem leia o que agora escrevo e, certamente, estará se lixando para um besta de um assim chamado intelectual, mero autor de uns pares de livros e de uns milhares de crônicas que jamais lhe causarão mossa. Mas eu quero dar meu recadinho.
Respeito também o senhor porque sei que meu respeito, ainda que talvez seja relutante privadamente, me é retribuído e não o faria abdicar de alguns compromissos com que, justiça seja feita, o senhor há mantido em sua vida pública – o mais importante dos quais é com a liberdade de expressão e opinião. O senhor, contudo, em quem antes votei, me traiu, assim como traiu muitos outros como eu. Ainda que obscuramente, sou do mesmo ramo profissional que o senhor, pois ensinei ciência política em universidades da Bahia e sei que o senhor é um sociólogo medíocre, cujo livro O Modelo Político Brasileiro me pareceu um amontoado de obviedades que não fizeram, nem fazem, falta ao nosso pensamento sociológico. Mas, como dizia antigo personagem de Jô Soares, eu acreditei.
O senhor entrou para a História não só como nosso presidente, como o primeiro a ser reeleito. Parabéns, outra vez, mas o senhor nos traiu. O senhor era admirado por gente como eu, em função de uma postura ética e política que o levou ao exílio e ao sofrimento em nome de causas em que acreditávamos, ou pelo menos nós pensávamos que o senhor acreditava, da mesma forma que hoje acha mais conveniente professar crença em Deus do que negá-la, como antes. Em determinados momentos de seu governo, o senhor chegou a fazer críticas, às vezes acirradas, a seu próprio governo, como se não fosse o senhor seu mandatário principal. O senhor, que já passou pelo ridículo de sentar-se na cadeira do prefeito de São Paulo, na convicção de que já estava eleito, hoje pensa que é um político competente e, possivelmente, tem Maquiavel na cabeceira da cama. O senhor não é uma coisa nem outra, o buraco é bem mais embaixo. Político competente é Antônio Carlos Magalhães, que manda no Brasil e, como já disse aqui, se ele fosse candidato, votaria nele e lhe continuaria a fazer oposição, mas pelo menos ele seria um presidente bem mais macho que o senhor.
Não gosto do senhor, mas não tenho ódio, é apenas uma divergência histórico-glandular. O senhor assumiu o governo em cima de um plano financeiro que o senhor sabe que não é seu, até porque lhe falta competência até para entendê-lo em sua inteireza e hoje, levado em grande parte por esse plano, nos governa novamente. Como já disse na semana passada, não lhe quero mal, desejo até grande sucesso para o senhor em sua próxima gestão, não, claro, por sua causa, mas por causa do povo brasileiro, pelo qual tenho tanto amor que agora mesmo, enquanto escrevo, estou chorando.
Eu ouso lembrar ao senhor, que tanto brilha, ao falar francês ou espanhol (inglês eu falo melhor, pode crer) em suas idas e vindas pelo mundo, à nossa custa, que o senhor é o presidente de um povo miserável, com umas das mais iníquas distribuições de renda do planeta. Ouso lembrar que um dos feitos mais memoráveis de seu governo, que ora se passa para que outro se inicie, foi o socorro, igualmente a nossa custa, a bancos ladrões, cujos responsáveis permanecem e permanecerão impunes. Ouso dizer que o senhor não fez nada que o engrandeça junto aos corações de muitos compatriotas, como eu. Ouso recordar que o senhor, numa demonstração inacreditável de insensibilidade, aconselhou a todos os brasileiros que fizessem check-ups médicos regulares. Ouso rememorar o senhor chamando os aposentados brasileiros de vagabundos. Claro, o senhor foi consagrado nas urnas pelo povo e não serei eu que terei a arrogância de dizer que estou certo e o povo está errado. Como já pedi na semana passada, Deus o assista, presidente. Paradoxal como pareça, eu torço pelo senhor, porque torço pelo povo de famintos, esfarrapados, humilhados, injustiçados e desgraçados, com o qual o senhor, em seu palácio, não convive, mas eu, que inclusive sou nordestino, conheço muito bem. E ouso recear que, depois de novamente empossado, o senhor minta outra vez e traga tantas ou mais desditas à classe média do que seu antecessor que hoje vive em Miami.
Já trocamos duas ou três palavras, quando nos vimos em solenidades da Academia Brasileira de Letras. Se o senhor, ao por acaso estar lá outra vez, dignar-se a me estender a mão, eu a apertarei deferentemente, pois não desacato o presidente de meu país. Mas não é necessário que o senhor passe por esse constrangimento, pois, do mesmo jeito que o senhor pode fingir que não me vê, a mesma coisa posso eu fazer. E, falando na Academia, me ocorre agora que o senhor venha a querer coroar sua carreira de glórias entrando para ela. Sou um pouco mais mocinho do que o senhor e não tenho nenhum poder, a não ser afetivo, sobre meus queridos confrades. Mas, se na ocasião eu tiver algum outro poder, o senhor só entra lá na minha vaga, com direito a meu lugar no mausoléu dos imortais.

terça-feira, 20 de julho de 2010

ÚLTIMA CANTIGA DE NINAR

Naquele dia Júlia havia deixado sua bicicleta em casa, precisava passar no supermercado após o trabalho.
Quando entrou no ônibus com as sacolas abarrotadas de compras, que o peso fazia com que as alças provocassem em suas mãos um vergão vermelho, procurou com os olhos, aflitos, um banco para sentar. Mas, percebeu que seria inútil alimentar essa esperança, ainda mais naquele horário da noitinha, em que todas as pessoas, como ela, estavam retornando para suas casas, após um estafante dia de trabalho.
Júlia procurou ajeitar as sacolas da melhor forma possível junto às pernas, no assoalho do ônibus, segurando em uma das mãos, aquela que continha ovos e a bandeja de iogurte. Com a outra mão tentava segurar-se nas poltronas dos passageiros, que a olhavam com um certo aborrecimento por se sentirem incomodados.
Em uma freada mais brusca, uma lata de extrato de tomate acompanhada de laranjas e cebolas saem rolando pelo corredor apertado, entre os pés das pessoas. Júlia agradece a cooperação de um ou outro passageiro que consegue interromper a fuga de suas mercadorias, ajudando-a colocar novamente na sacola.
Em casa as crianças fazem a festa, vendo as compras. Como é bom vê-los abrindo as sacolas, felizes, confiantes no que vão encontrar.
___ Que legal! A mamãe trouxe iogurte, vamos ter sobremesa após o jantar.
___ Não. O iogurte é pra gente tomar no café da manhã, não é mamãe?
___ Oba! A mamãe trouxe sucrilhos, eu adoro sucrilhos.

Júlia já está no fogão preparando o jantar. As mãos ainda doloridas, lavam com amor e rapidez os legumes, corta o frango em pedaços menores, descasca o alho, amassa e coloca na panela. Ah! É maravilhoso o cheirinho de alho fritando no azeite, trazendo aquela sensação de bem estar e abundância. Aquece a casa, além disso, fortalece as crianças, evitando os resfriados.
Júlia é uma mulher forte, se não fosse tinha que ser e, isso pra ela bastava. Sua fortaleza vinha daqueles momentos em que via seus filhos se alimentarem, sabia ser responsável por aquelas vidas, o alimento aquecia seus corpos e suas almas.

___ Venham escovar os dentes. Depois quero ver os cadernos, onde estão as lições de casa? E os uniformes. Deixe-me ver. Nossa! Como essa camiseta está suja! Vou lavar e secar no ferro amanhã de manhã, antes de ir trabalhar. ___ Olhe as orelhas no caderno, a professora vai ficar brava. ___ Faça a letra assim mais redondinha. Muito bem sua redação está linda!

___ Vamos crianças, coloquem os pijamas enquanto a mamãe vai tomar banho, quero ver a novela.
___ Mas, mamãe, você nunca consegue assistir a novela, todo dia dorme no sofá.
Ela sabia que eles tinham razão. Como gostaria de ver televisão, conversar mais com eles, brincar um pouco. Ó, Deus! Estou perdendo a infância de meus filhos! Culpa. Sentia-se culpada. Mas, com esse sentimento não conseguiria criar seus filhos. Eles precisavam de alimento, cama com lençóis limpos e cobertores para aquecer seus pequenos corpos. Sim, eram motivos justos, prementes. Engoliu o soluço, tinha que ser assim.

___ Mamãe acorda, vamos pra cama, seu pescoço vai ficar doendo aí no sofá, venha. As pequenas mãos tentavam levantá-la do sofá.
Essa rotina noturna confortava um pouco a exaustão de seu corpo. Gostava dessa preocupação carinhosa dos filhos e, às vezes, fingia continuar dormindo para prolongar esse momento de íntima felicidade.

Júlia deu corda no despertador, acertou o horário e o colocou dentro de um caldeirão de alumínio. Essa era uma tática para aumentar o ruído da campainha ao despertar e ela acordar, sem perder a hora.
Para chegar ao trabalho, às cinco horas da manhã, tinha que levantar-se com uma hora e meia de antecedência. Preparar o café da manhã das crianças, o almoço, passar os uniformes e, finalmente, percorrer em sua bicicleta os quatro quilômetros de estrada, até a firma onde trabalhava.
Entra no quarto das crianças, pé ante pé, estão em profundo sono. Um beijo em suas frontes, uma ajeitada nas cobertas, uma oração, um pedido de proteção.
Já na estrada em sua bicicleta, para aliviar o medo na escuridão da madrugada, Júlia vai pedalando e cantarolando a cantiga de ninar que não deu tempo de cantar para seus filhos, desejando que eles não acordem, dando por sua falta e sintam medo.
A chuva fininha que começa a cair, misturam-se às lágrimas que teimam em rolar por sua face, de repente uma buzina, uma luz forte, ofuscando ainda mais seus olhos, um caminhão, as freadas, os enormes pneus. Ó, Deus! Meus filhos. Que será de meus filhos...
Acabou. Tudo agora é silêncio. Um profundo silêncio.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

EM NOME DE DEUS

O filme é baseado em fatos reais, a história de amor entre Pierre Abélard (1079-1142) teólogo e filósofo francês, nascido em Le Pallet, perto de Nantes, considerado um dos maiores intelectuais do século XII e sua aluna Héloise (1100-1164), sobrinha do cônego Fulbert, aconteceu em um momento, onde a igreja católica era a principal referencia na vida das pessoas e detentora de enorme poder político. Professores de filosofia deviam ser celibatários, portanto, Abelardo e Heloísa eram impedidos pela igreja de assumir seu romance. Após ser castrado ele se tornou monge no mosteiro de Saint-Denise, onde continuou lecionando, e ela freira em um convento de Argenteuil.

RESENHA

As duas cenas, do filme, que mexeram muito comigo, respectivamente, foram as cenas de sexo, entre Abelardo e Heloisa, no estábulo e quando Heloisa procura o tio para amaldiçoá-lo.
Na primeira, me emocionei pelo sabor do secreto, aquilo que não pode ser contido e precisa ser escondido, mas, devido ao próprio envolvimento de paixão em que se encontram, eles não se asseguram desse segredo. Não tomam as devidas precauções porque estão em estado de encantamento, onde, em nome desse amor estão cegos para o perigo, mesmo sabendo que ele existe.
Esse sentimento de abrir a guarda, ficar vulnerável, ser tomado por uma paixão inconseqüente, no caso de Abelardo, contrário a tudo aquilo que dantes ele acreditava e pregava.
De repente, ele é sucumbido ao golpe inesperado do amor, buscando qualquer lugar onde possam estar juntos, seja em local confortável e apropriado ou, em um estábulo, no chão cheio de estrumes, moscas, cheiro de animais que, na realidade naquele momento eles são, verdadeiramente, levados apenas pelo instinto animal que existe em todos nós.
Na segunda cena, também muito forte, estimulada pelo ódio, outro sentimento tão poderoso quanto o amor da primeira cena, Heloisa joga sobre o tio sua maldição pelo resto de sua vida e por toda a eternidade, desejando que ele queime no fogo do inferno por todo o sempre, porque foi a causa de sua infelicidade. Foi ele quem mandou castrar o homem que ela amava, condenando-os a mais cruel vida, pois, castrou não apenas a parte física, mas, principalmente, todos os sonhos e desejos que alimentavam aquele amor.
A amizade incondicional de um dos alunos e amigo de Abelardo, Jourdain, que, também, amava Heloísa, mas, renunciou a esse amor por saber que ela nunca deixaria de amar o professor. Apesar disso, Jourdain continuou acompanhando-os e auxiliando-os sem esperar nada em troca, se tornando ainda protetor do filho que eles tinham deixado com a irmã de Abelardo, sendo por ela criado.
Falar sobre amizade e fidelidade nos dias atuais nos faz pessoas melhores, diante de tantos valores esquecidos e pouco usuais. Quando assistimos cenas, mesmo que fictícias, enaltecendo esses sentimentos, precisamos divulgar e refletir sobre isso.
A fidelidade religiosa de Abelardo é comovente. Após ser mutilado e sofrendo dores terríveis, ele se voltou pra Deus e disse ser merecedor do castigo. Mesmo quando estava tendo relações sexuais com Heloísa, ele conservava essa fidelidade a Deus e se sentia culpado.
Após a castração, entendeu que aquilo foi uma punição e entregou sua vida, definitivamente, ao desenvolvimento de sua religiosidade.
É lindo ver a forma que o professor lidava com seus alunos, em um clima de liberdade e cumplicidade, sem sala de aula, sem carteiras, andando entre os educandos, filosofando, instigando o debate. Seu modo de lecionar, bem liberal pra época, provocava raiva e inveja em alguns religiosos, mas, recebia o apoio do Bispo por trazer pessoas a Paris para conhece-lo, portanto, estimulava os negócios da igreja.
O filme é belíssimo, com fortes cenas de amor e dedicação humana, tanto do lado de Heloisa, que mesmo não gostando e contestando as crenças da igreja católica, se entregou ao convento por amor a Abelardo, quando esse lhe pediu para ela se tornar freira. Heloísa fez um trabalho muito importante dentro do convento, protegendo as demais freiras, notadamente, as mais idosas.
Por outro lado, Abelardo nos dá testemunho de extrema dedicação a igreja e a educação, prosseguindo sua tarefa como educador, sempre acompanhado por seus alunos, seus seguidores fiéis.
Sempre que assistimos algum filme, aprimoramos nosso olhar, não apenas com relação aos processos educativos, mas, em relação a própria vida. A educação está presente em tudo, tanto na vida real quanto na ficção, estamos sempre envolvidos com esse processo.