terça-feira, 20 de julho de 2010

ÚLTIMA CANTIGA DE NINAR

Naquele dia Júlia havia deixado sua bicicleta em casa, precisava passar no supermercado após o trabalho.
Quando entrou no ônibus com as sacolas abarrotadas de compras, que o peso fazia com que as alças provocassem em suas mãos um vergão vermelho, procurou com os olhos, aflitos, um banco para sentar. Mas, percebeu que seria inútil alimentar essa esperança, ainda mais naquele horário da noitinha, em que todas as pessoas, como ela, estavam retornando para suas casas, após um estafante dia de trabalho.
Júlia procurou ajeitar as sacolas da melhor forma possível junto às pernas, no assoalho do ônibus, segurando em uma das mãos, aquela que continha ovos e a bandeja de iogurte. Com a outra mão tentava segurar-se nas poltronas dos passageiros, que a olhavam com um certo aborrecimento por se sentirem incomodados.
Em uma freada mais brusca, uma lata de extrato de tomate acompanhada de laranjas e cebolas saem rolando pelo corredor apertado, entre os pés das pessoas. Júlia agradece a cooperação de um ou outro passageiro que consegue interromper a fuga de suas mercadorias, ajudando-a colocar novamente na sacola.
Em casa as crianças fazem a festa, vendo as compras. Como é bom vê-los abrindo as sacolas, felizes, confiantes no que vão encontrar.
___ Que legal! A mamãe trouxe iogurte, vamos ter sobremesa após o jantar.
___ Não. O iogurte é pra gente tomar no café da manhã, não é mamãe?
___ Oba! A mamãe trouxe sucrilhos, eu adoro sucrilhos.

Júlia já está no fogão preparando o jantar. As mãos ainda doloridas, lavam com amor e rapidez os legumes, corta o frango em pedaços menores, descasca o alho, amassa e coloca na panela. Ah! É maravilhoso o cheirinho de alho fritando no azeite, trazendo aquela sensação de bem estar e abundância. Aquece a casa, além disso, fortalece as crianças, evitando os resfriados.
Júlia é uma mulher forte, se não fosse tinha que ser e, isso pra ela bastava. Sua fortaleza vinha daqueles momentos em que via seus filhos se alimentarem, sabia ser responsável por aquelas vidas, o alimento aquecia seus corpos e suas almas.

___ Venham escovar os dentes. Depois quero ver os cadernos, onde estão as lições de casa? E os uniformes. Deixe-me ver. Nossa! Como essa camiseta está suja! Vou lavar e secar no ferro amanhã de manhã, antes de ir trabalhar. ___ Olhe as orelhas no caderno, a professora vai ficar brava. ___ Faça a letra assim mais redondinha. Muito bem sua redação está linda!

___ Vamos crianças, coloquem os pijamas enquanto a mamãe vai tomar banho, quero ver a novela.
___ Mas, mamãe, você nunca consegue assistir a novela, todo dia dorme no sofá.
Ela sabia que eles tinham razão. Como gostaria de ver televisão, conversar mais com eles, brincar um pouco. Ó, Deus! Estou perdendo a infância de meus filhos! Culpa. Sentia-se culpada. Mas, com esse sentimento não conseguiria criar seus filhos. Eles precisavam de alimento, cama com lençóis limpos e cobertores para aquecer seus pequenos corpos. Sim, eram motivos justos, prementes. Engoliu o soluço, tinha que ser assim.

___ Mamãe acorda, vamos pra cama, seu pescoço vai ficar doendo aí no sofá, venha. As pequenas mãos tentavam levantá-la do sofá.
Essa rotina noturna confortava um pouco a exaustão de seu corpo. Gostava dessa preocupação carinhosa dos filhos e, às vezes, fingia continuar dormindo para prolongar esse momento de íntima felicidade.

Júlia deu corda no despertador, acertou o horário e o colocou dentro de um caldeirão de alumínio. Essa era uma tática para aumentar o ruído da campainha ao despertar e ela acordar, sem perder a hora.
Para chegar ao trabalho, às cinco horas da manhã, tinha que levantar-se com uma hora e meia de antecedência. Preparar o café da manhã das crianças, o almoço, passar os uniformes e, finalmente, percorrer em sua bicicleta os quatro quilômetros de estrada, até a firma onde trabalhava.
Entra no quarto das crianças, pé ante pé, estão em profundo sono. Um beijo em suas frontes, uma ajeitada nas cobertas, uma oração, um pedido de proteção.
Já na estrada em sua bicicleta, para aliviar o medo na escuridão da madrugada, Júlia vai pedalando e cantarolando a cantiga de ninar que não deu tempo de cantar para seus filhos, desejando que eles não acordem, dando por sua falta e sintam medo.
A chuva fininha que começa a cair, misturam-se às lágrimas que teimam em rolar por sua face, de repente uma buzina, uma luz forte, ofuscando ainda mais seus olhos, um caminhão, as freadas, os enormes pneus. Ó, Deus! Meus filhos. Que será de meus filhos...
Acabou. Tudo agora é silêncio. Um profundo silêncio.

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